Um dos artistas da modelação dos espaços e sua representação, DonatoBramante, é aqui tratado como personagem central sobre quem gira ahistória da arquitectura do renascimento na Itália. Surgido com aqualidade de edificador em Milão no final do século XV, estearquitecto pintor absorveu as hesitações do meio regional em que semoveu e as reflexões especulativas de Leonardo da Vinci, paraacreditar num modo de fazer que constituiria a síntese para asuperação da crise. Em Roma, sob patrocínio das poderosas instituições religiosas, recuperou os símbolos finais da grandeza do velho império levantando os templos da era católica. Por isso Bramante foiconsiderado o representante do renascimento pleno, do momento daperfeição que, como o instante que rapidamente se desvanece,representa o cúmulo da obra perfeita e logo se desequilibra napresunção de uma grandeza realmente ilusória. Não se pode ler Bramante sem o Leonardo especulativo, inconstante, cujos apontamentos parecemconduzir as explorações sobre a problemática do espaço central quefora a preocupação de toda a primeira geração de arquitectosflorentinos. A ordenação equidistante das componentes organizadoras da função religiosa e dos seus significados procura a imitação dafórmula perfeita expressa no círculo do horizonte ou na esferaceleste, aceitando o quadrado circunscrito ou a cruz de braços iguaisinscrita como alternativa eficaz de aproximação ao enunciadofundamental. O homem continua a aparecer como justificador das formascriadas, mas cada vez menos é o destinatário da arte, trocado pelaideia da grandeza do poder dos príncipes. A corrente humanista que otomava como pessoa merecedora da felicidade foi substituída peladesumanidade das estruturas gigantescas, embora correctamenteproporcionadas. Um outro tema é o da organização da praça pública,imitação do forum romano antigo, que absorveu Bramante nos últimosanos da sua experiência milanesa. A tradição da vida pública noslugares centrais dos burgos mercantis tem raízes fundas na organização colectiva da vida das cidades, muito dependentes das estruturas deconsolidação das relações humanas. Galerias cobertas no envolvimentodos terreiros de mercado produzindo sombra e conforto à porta daslojas dos mercadores fixos eram, e ainda são, normais e frequentes nas aglomerações de toda a área mediterrânica, o que acontece desde amais remota antiguidade. A atitude de fazer reaparecer a importânciasimbólica do lugar central sob o modelo do antigo percorre todo oséculo XV na idiossincrasia dos seus artistas comprometidos com aspolíticas urbanas. Assim sucedeu com Bramante que, contraditoriamenteà linha dominante da sua arquitectura monumental, procurou reencontrar no ordenamento dos espaços públicos o espírito humanista de umpassado recente. Resta a questão do fingimento. Os pintores, no âmbito da sua procura para a representação verdadeira do espaço, semprerecorreram às figurações de estruturas arquitectónicas paracaracterizar o ambiente das cenas que pretendiam resolver. Em geralusaram a imagem dos templos para dimensionar a realidade com cada vezmelhor verosimilhança das situações pretendidas. Competindo aosartistas da produção da imagem pictórica plana simular a terceiradimensão, não espanta que um espírito ágil e sensível como o do jovemDonato se tenha deixado seduzir pelas suas próprias qualidades e,invadindo o território das artes da produção concreta do espaço, tenha recorrido à ´doce perspectiva´ para realizar o impossível. Era apenas mais um sintoma da crise do tempo, vencer cada dificuldade fingindoque ela não existe, ignorando a dura condição do quotidiano.